Relatório aponta 428 crimes contra essas populações em seis anos no estado
A violência contra povos e comunidades tradicionais aumentou na Bahia em 2022. É o que aponta o Relatório Além da Floresta: Crimes Socioambientais nas Periferias, realizado pela Rede de Observatórios de Segurança com apoio das secretarias de segurança pública estaduais. De acordo com a pesquisa, que engloba os estados monitorados pela Rede (Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo), a Bahia é o segundo estado com mais ocorrências de violência contra essas populações, atrás apenas do Pará.
O boletim, lançado oficialmente nesta segunda-feira (19), aponta que foram registrados 428 crimes contra os povos e comunidades tradicionais entre 2017 e 2022. Só no ano passado, foram 230 denúncias, dentre as quais a ameaça foi a mais recorrente, com 131 ocorrências. As informações foram conseguidas através da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Os outros crimes presentes na análise em 2022 foram lesão corporal (51 casos), injúria (30), estupro (11), tentativa de homicídio (2), importunação sexual (4) e tentativa de feminicídio (1). As mulheres foram as principais vítimas das violações, sendo alvo de 58% dos casos.
Segundo Larissa Neves, uma das idealizadoras do relatório, o monitoramento dos crimes tem como objetivo dar visibilidade à violência que tem impacto e coloca em risco o modo de vida dessas comunidades. “Geralmente, quando a gente vai analisar fenômenos de violência, sempre trazemos o nosso olhar para a dicotomia entre urbano e rural, e nos últimos tempos a gente tem falado muito sobre uma interiorização da violência”, diz Neves.
“Novas dinâmicas têm sido apresentadas, especialmente em estados das regiões Norte e Nordeste do Brasil, que vêm mostrar populações que são expulsas de áreas rurais e passam a se concentrar em pequenas cidades próximas, criando o que a gente está chamando de periferias rurais. Por isso, a sistematização desses dados é muito importante, especialmente no que diz respeito à defesa e permanência no território dessas comunidades”, afirma.
Os povos e comunidades tradicionais são as coletividades que se organizam de acordo com as tradições. A nomenclatura é separada em ‘povos’ e ‘comunidades’ porque o primeiro termo refere-se aos povos indígenas, ou povos originários, e o segundo a grupos como quilombolas, ciganos e ribeirinhos.
No caso da Bahia, foram analisadas comunidades indígenas e quilombolas. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), considera 28 comunidades como “povos tradicionais”. São elas os Indígenas, Andirobeiras, Apanhadores de Sempre-Vivas, Caatingueiros, Catadores de Mangaba, Quilombolas, Extrativistas, Ribeirinhos, Caiçaras, Ciganos, Povos de Terreiros, Cipozeiros, Castanheiras, Faxinalenses, Fundo e Fecho de Pasto, Geraizeiros, Ilhéus, Isqueiros, Morroquianos, Pantaneiros, Pescadores Artesanais, Piaçabeiros, Pomeranos, Quebradeiras do Coco Babaçu, Retireiros, Seringueiros, Vazanteiros e Veredeiros.
Para José Augusto Sampaio, antropólogo e fundador da Anaí (Associação Nacional de Ação Indigenista), o Estado tem feito menos que o necessário para a resolução desses crimes. “Aqui na Bahia, eu diria que o Estado tenta ter uma atitude de combate a esses crimes, mas também que essa atitude deveria ser mais efetiva, mais incisiva. No caso típico das violência contra os Pataxós no extremo Sul, há iniciativas para combater a violência, mas eu diria que não são suficientes, porque tem interesses políticos também, dos inimigos poderosos dos Pataxós. Isso faz com que o Estado muitas vezes fique numa situação de tentativa de mediação, que acaba gerando uma falta de atividade no combate à violência”, afirma.
Questionada sobre as medidas que podem diminuir a ocorrência de violações contra esses grupos, a SSP afirmou que, além da criação e implantação da Força Integrada, instalou na manhã da última sexta-feira (15) o Comando de Policiamento do Extremo Sul, composto por oito unidades operacionais, com entrega de novas viaturas.
Um dos pontos defendidos pelo Relatório é que sejam feitas mudanças que ultrapassem as medidas bélicas para controlar a violência. Segundo o boletim, é necessário colocar em primeiro plano o fortalecimento dos órgãos de prevenção da destruição, além de, antes de tudo, colocar as organizações que lutam por direitos sociais no centro do diálogo.
“A prioridade é o combate a crimes contra povos e comunidades tradicionais, atuação contra organizações criminosas e mediação dos conflitos que envolvam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) entre outras”, disse a Secretaria, em nota. “Por fim, a SSP lembra que os casos de ameaça, agressão, tentativa de homicídio e assassinato na região têm relação direta com a disputa por terras entre indígenas e ruralistas. A decisão da propriedade da terra não é de competência da polícia estadual. É importante que as instituições responsáveis por essa decisão, sejam consultadas”, completa.
Dentre as instituições responsáveis mencionadas pela SSP, destaca-se o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O Instituto foi procurado para falar sobre os conflitos por território envolvendo populações tradicionais, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.
A luta por territórios é uma parte essencial das reivindicações feitas pelas comunidades tradicionais, sobretudo os povos indígenas. Foi nesse sentido que ocorreu em Salvador, entre os dias 12 e 16 de junho, a quinta edição do Acampamento Terra Livre na Bahia. A ATL, que nesta edição veio como protesto ao Projeto de Lei 490/07, que propõe o marco temporal para definição de terras indígenas, tem como principal objetivo dar visibilidade ao movimento pela demarcação dos territórios indígenas.
Crimes socioambientais na Bahia
Na pesquisa, a Rede observou não só casos de crimes diretos contra as populações, como também os crimes socioambientais. O conceito de crimes ambientais registrado no relatório variou de acordo com o entendimento dos estados. Entretanto, no geral, foi entendido pela maioria como situações como garimpo ilegal, ocupação de terras (grilagem), derrubada de árvores em terras não autorizadas (madeireiros), pesca de peixes e caranguejos, tráfico de aves e maus tratos a animais, por exemplo.
Os crimes socioambientais diferem dos ambientais, que já têm uma definição e leis referentes a eles, no seu impacto nos padrões de sociabilidade de populações periféricas, termo que inclui as comunidades tradicionais.
“Enquanto essas comunidades sofrerem com a destruição do meio ambiente, sofrerem com a desestruturação do seu meio de vida, está posto um desafio. Então o Estado precisa se responsabilizar cada vez mais por essas dinâmicas que acontecem dentro desses territórios, pelas dinâmicas tanto que estão atreladas a conflitos socioambientais às dinâmicas que estão envolvidas dentro desse processo”, afirma a pesquisadora Larissa Neves.
Na Bahia, esses crimes estão concentrados em locais específicos: apenas seis cidades registraram mais da metade dos eventos reunidos no boletim. São elas Porto Seguro, Salvador, Banzaê, Pau Brasil, Ilhéus e Itaju do Colônia, que representam 52,2% dos casos.
A presença do município de Banzaê, localizado a aproximadamente 325 quilômetros de Salvador, destaca-se no ranking. Isso porque a cidade, marcada pela presença do povo indígena Kiriri, sua luta pela demarcação territorial e, por consequência, conflitos com fazendeiros locais, foi a primeira da Bahia a criar uma Secretaria dos Povos e Comunidades Tradicionais, em março de 2023.
Antes da criação desta secretaria, já existiam no estado outras que contemplavam apenas os povos indígenas, em Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. A Secretaria do Banzaê foi a primeira a abarcar, além dos povos indígenas, as pautas de outros segmentos tradicionais. De acordo com Dernival Kiriri, o secretário da pasta, o órgão conta com uma divisão igualitária: são quatro indígenas e quatro quilombolas na integração da Secretaria dos Povos e Comunidades Tradicionais.
“É uma luta. Não é de agora que a gente está pensando na criação dessa secretaria, é de muitos anos. Mas, por não termos pessoas já capacitadas, a gente tinha essa dificuldade. Com o conhecimento que a gente teve através da academia, porque a gente passa a ter um olhar mais diferenciado, nós tivemos como dizer ‘não, nós queremos comandar a nós mesmos, não que os outros comandem por nós’”, diz Dernival.
A existência da secretaria e a presença das populações tradicionais na política são passos essenciais para a autonomia dessas comunidades, além da defesa de seus direitos. “A Bahia conta com aproximadamente 30 povos indígenas e 500 comunidades quilombolas em todas as regiões do Estado. Então a criação dessa secretaria é de suma importância, porque vai promover o diálogo em todos os setores da administração municipal para execução de ações de políticas públicas voltadas para as demandas das comunidades indígenas e quilombolas. É a própria comunidade ocupando espaços de ação, de reflexão e de construção de políticas públicas”, defende a pesquisadora Larissa.
De acordo com Dernival, um espaço importante no aparelho político começou a ser traçado a partir da criação da Secretaria. “Nós conseguimos incluir funcionários indígenas à Assistência Social e ao Cras Indígena. Estamos conseguindo também colocar dentro do município coordenadores e operadores indígenas para as escolas, na Assistência Social e na Secretaria da Agricultura. Ou seja, hoje os outros estão conseguindo ouvir a gente através da nossa representatividade”, afirma o secretário.