Comunidade de Barra do Brumado foi certificada como remanescente de quilombo em 2005
As palmas param quase no mesmo instante em que a cantiga termina. “Papai, mamãe, dindinha, cadê vovó? Êêêê… é do bendengó. Êêêê… é do bendengó”. O verso é de uma das cantigas que os moradores da vila de Barra do Brumado costumam cantar quando se reúnem. Os turistas, ainda em círculo, ouvem atentamente o líder da comunidade quilombola falar. “O desenvolvimento ainda não chegou totalmente aqui”, diz ele. Meses depois, em entrevista para reportagem especial, Carmo Joaquim da Silva, o seu Carmo, de 67 anos, detalha o que quis dizer.
“Eu estava falando sobre o progresso político porque (somos) a comunidade mais antiga de Rio de Contas e não somos vistos como sociedade. Até agora, a gente ainda vive na inércia, só tapeação no momento político para enganar os quilombolas”, pondera Seu Carmo.
Professor e técnico de enfermagem, Carmo é um dos moradores da comunidade quilombola da Barra do Brumado ou apenas Barra, vilarejo que fica a 15 quilômetros da cidade de Rio de Contas, na Chapada Diamantina, e se tornou um atrativo turístico. Há um tour oferecido pelos guias para visitar não só ela, onde moram cerca de 70 famílias, como o Bananal, também quilombola, e a comunidade do Mato Grosso, de descendentes de bandeirantes portugueses.
Carmo, nascido e criado na Barra, faz questão de detalhar como começaram a povoar a região. Um navio que trazia negros escravizados atolou em Itacaré. “Somos restantes do povo de um navio negreiro que veio da África e atolou em Itacaré no século XVI. Percebendo-se que estavam enganados, o povo saltou no rio das contas que desemboca no mar. Quem não morreu nas marés, nas correntezas, no rio, seguiu o rio das contas”, conta.
No século XVIII, no entanto, eles foram encontrados por bandeirantes portugueses. “Os bandeirantes, na companhia de Raposo Tavares, encontraram esse povo aqui em Rio de Contas e os obrigaram a trabalhar como escravos no Mato Grosso. Daí formaram-se as comunidade de Barra, Bananal e Riacho das Pedras porque não podia dormir em Mato Grosso, porque negro não dormia em vila de branco para não sujar a raça, porque o negro era impuro. Negro não era gente, era animal. Não podia dormir em vila de branco”, acrescenta Seu Carmo.
Em 12 de setembro de 2005, a comunidade foi certificada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Carmo ressalta que, atualmente, as principais dificuldades enfrentadas pelos moradores estão relacionadas a áreas como a da saúde. “Não há especialistas próximos, tem que ir para (Vitória da) Conquista, Salvador, Caetité, Guanambi ou Seabra. Eu mesmo estou fazendo exames em Salvador”.
Economia
Enquanto o grupo de turistas que visitava o local no dia se dispersa e vai conferir o artesanato local, um senhor a poucos metros dali debulha feijão com o uso de um mangual. Atrás dele, a serra emoldura o cenário. Seu Carmo conta que a comunidade vive da agricultura de subsistência (plantio de manga, laranja, maracujá, feijão e mandioca), mas que há também muitos idosos, aposentados. “O turismo e o artesanato são apenas uma ajuda. A gente vive também da roça. Todas as mulheres que são artesãs trabalham na roça. Nos momentos vagos e à noite, fazem artesanato para ajudar”.
Na pracinha, está localizada a maior parte das residências. Há também um cemitério, uma escola primária, dois campos de futebol de terra, a Igreja de Nossa Senhora Aparecida (datada de 1925) e equipamentos comunitários como um “Centro de Múltiplo Uso do Quilombo”. “Viver aqui é bom. É uma tranquilidade. Quem mora aqui vive sem preocupação. Se preocupa com as necessidades da vida porque não tem emprego. Às vezes, a roça não produz. Uma hora perde com chuva. Outra hora perde com sol, Infelizmente, nem sempre tem água suficiente”, frisa o líder comunitário.
Da infância, ele tem várias lembranças, inclusive de sofrimento. “Naquele tempo não tinha nada. Tudo era muito difícil. Hoje está difícil, mas está melhor. Eu saia para trabalhar fora desde os oito anos, andando a pé até Livramento de Nossa Senhora”. Mas houve também bons momentos. “Eu participava de todas as festas. Não perdia nada aqui na região. Tudo eu ia a pé ou no burro”.
A guia Carla Luiza Pereira costuma levar turistas com frequência à Barra. A canção que abre o texto foi ensinada por ela, minutos antes de chegarmos ao local. Lá, ela fez questão de cantar com os moradores. “As comunidades da Barra e do Bananal têm uma rica história. Foram negros foragidos. Teve o naufrágio em Itacaré e eles foram subindo o leito até chegar às margens do rio de Contas. Foram construindo suas casas, de forma salteada, para que ninguém percebesse que estavam lá”.
Apesar de terem sido descobertos e escravizados, emenda Luiza, que é presidente da Associação de Guias de Rio de Contas, eles foram resistindo. “Havia uma terceira, a do Rio das Pedras, mas foi inundada com a construção da barragem. Barra e Bananal também perderam algumas terras. Hoje, eles resistem, com a sua cultura local. Depois da proteção federal, conseguiram segurar mais as suas terras”.
Como atrativo, Luiza diz que é importante a visita às três comunidades para conhecer a história, cultura e artesanatos. “Temos a portuguesa e as quilombolas. É possível perceber a vasta diferença, de forma clara e nítida, até hoje de uma comunidade que é de pele retinta e outra que não é”.
O guia Lé, que trabalha no ramo há 25 anos, detalha que todos os dias os escravizados tinham que subir da vila quilombola para fazer trabalhos na portuguesa, que se tornou, à época, um grande centro de mineração na região, de onde foram extraídas toneladas de ouro. “Para evitar a mistura de raças, os escravos não podiam ficar na vila portuguesa, tinham que fazer o caminho de volta aos quilombos, após os trabalhos diários”.
As consequências da construção da barragem foram, segundo Lé, danosas para as comunidades quilombolas, principalmente para as do Rio das Pedras, que não existe mais, e a do Bananal. A situação só veio a ser modificada com a certificação da Fundação Palmares. “O reconhecimento trouxe alguns benefícios para os moradores que, até então, não tinham energia elétrica. Todo o trabalho era feito de forma artesanal. O sinal de celular só chegou na região em 2011 e, aos poucos, o uso da internet via radio e fibra foi se popularizando”.
Apesar de todos os desafios atuais e da história de sofrimento e exploração com a escravização, Seu Carmo espera por dias melhores. “Quero ver a comunidade de outra forma. Aquilo que eu não alcançei. Que os meus sucessores não vivessem aquilo que a gente viveu. Que a gente fosse mais reconhecido. Que reconhecessem a dignidade do povo negro. Que tivessem uma vida mais decente. A gente sabe que está melhorando, mas esperamos que seja melhor. Que a gente tenha mais consciência de que somos protagonistas dessa história”.